quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Entrevista, e Não Só, do Presidente Pinto da Costa à Revista “O Tripeiro”

O post é realmente longo, mas vale a pena ler até ao fim.

“O homem que soltou o Dragão

É indiscutivelmente um dos grandes homens da cidade do Porto e do país.

Apesar de ter vencido tudo aquilo que havia para vencer, e de ter projectado o FC Porto no plano internacional, o seu entusiasmo continua igual ao do primeiro dia. Jorge Nuno Pinto da Costa é o grande obreiro do FCP, um clube que não tem concorrência interna à sua altura e uma das mais prestigiadas instituições da cidade. E porque a grandeza e o sucesso merecem reconhecimento, é justamente a Pinto da Costa, grande líder portuense e portista, que O TRIPEIRO dedica este mês o seu destaque.

O Futebol Clube do Porto transformou-se, nos últimos 30 anos, numa das mais importantes marcas desta nossa cidade que lhe deu o nome. O impacto desse fenómeno não se limita, hoje, ao plano desportivo, e é reconhecido por muita gente, dentro e fora de portas; até mesmo por quem não gosta de futebol, e considera que a sua importância é excessiva ou nefasta, mas que se apercebe que, no estrangeiro, o nome do clube ombreia com o do nosso Vinho do Porto. A verdade é que, goste-se dele ou não, o futebol é, na actualidade, um dos maiores dos maiores negócios do Mundo, não apenas pelas colossais verbas envolvidas mas, também, pelo impacto que tem na opinião pública. Por isso, são muitos os observadores que se interrogam sobre qual será o segredo de um clube de índole regional, sediado numa pequena cidade de um país periférico, que tem fraco poder de compra e um mercado publicitário reduzido – o que lhe limita os orçamentos e lhe coloca fortes constrangimentos – e que, no entanto, consegue competir com os melhores, a nível global, ainda por cima de forma sustentada, e não episódica como muitos quiseram acreditar. Ora, este mesmo clube era, até há 30 anos, praticamente desconhecido no cenário internacional, e também a nível doméstico, apesar de sempre ter tido uma massa adepta dedicada, fervorosa e entusiástica, raramente conseguia rivalizar com os clubes da capital.

A revolução que alterou esse equilíbrio de forças teve, como ideólogo, e grande protagonista, Jorge Nuno Pinto da Costa. Conhecendo as contrariedades que teria de enfrentar, porque sabia que o centralismo vigente no país nunca acataria pacificamente a inversão dessa lógica, Pinto da Costa construiu, com o apoio de José Maria Pedroto, uma estratégia de combate. Ambos perceberam que não bastaria conseguir os melhores atletas, ter a melhor equipa, ou jogar o melhor futebol. Ao contrário do que sucedia com os clubes da capital, não bastaria ao FC Porto ser o melhor para vencer. Era preciso ser muito melhor do que a concorrência da capital, num país em que tudo aquilo que desafia a lógica do centralismo é olhado com desdém ou é alvo de uma tenaz perseguição. Era essencial também, afrontar o sistema vigente e adoptar uma estratégia belicista, assente nos princípios tácticos da guerrilha, cujo sucesso dependia o empenho individual e da comunhão colectiva de todos aqueles que não se resignavam ao “status quo”. Era necessário, para isso, romper com a tradição de um clube que, por norma, tinha bom perder, e se resignava à sua irrelevância, recebendo em troca, e como único troféu, o prémio da simpatia. Pinto da Costa acreditou, e fez com que os adeptos e toda a estrutura do clube, desde o roupeiro ao treinador principal, também acreditassem, que esse não era o destino inevitável do clube. Foi essa estratégia que permitiu que, em muito pouco tempo, que o FC Porto se superiorizasse aos seus concorrentes. Com Pinto da Costa e Pedroto, o temor reverencial deu lugar ao confronto. O clube passou a atravessar a Ponta da Arrábida, rumo a sul, sem complexos. E, uma vez conquistada a hegemonia, a nível nacional, Pinto da Costa olhou para fora de portas, assumindo que a base regional do clube, que nunca renegou, não o impediria de se afirmar no estrangeiro.

Depois, ao vencer o primeiro título europeu, surpreendendo a Europa e o Mundo, e quando muitos pensavam que se estava perante um epifenómeno, Pinto da Costa promete que continuaria ao leme, e garantiu que voltaria a ganhar. Entretanto, o FC Porto foi pulverizando recordes antigos, não apenas no futebol, mas também nas outras modalidades. Equilíbrio entre paixão e racionalidade. Trinta anos depois, o FC Porto é hoje o clube português com maior número de títulos nacionais e internacionais. A instituição cresceu, e a gestão foi evoluindo de acordo com os tempos e os ventos. Foi constituída uma sociedade anónima desportiva para o futebol, houve uma repartição das responsabilidades, mas Pinto da Costa nunca deixou de tomar as decisões mais importantes. E, sempre que entendeu que era necessário intervir, agiu com mão firme, sem hesitações.

O segredo da gestão de Pinto da Costa reside na sua capacidade de tomar decisões em que a paixão e a racionalidade se equilibram nos dois pratos da balança. Há muitos observadores que valorizam os seus dons instintivos mas, se é certo que esse instinto existe, também é verdade que ele é um mestre, com um conhecimento íntimo e objectivo de tudo o que rodeia, o que lhe permite aperfeiçoar a sua intuição, quando chega a hora de tomar decisões.

Sobre ele, o jornalista Carlos Magno escreveu, um dia, que ele “comanda o clube com paixão mas racionaliza as emoções. É um líder. Um príncipe na relva e um homem do povo na tribuna presidencial” e dividiu-o em duas personalidades distintas, entre o “Jorge Nuno que é um gentleman, filho de boas famílias, um burguês culto e liberal do Porto” e o “Pinto da Costa, que é frio, cerebral e implacável na defesa do clube”. Francisco Lucas Pires iria mais longe, quando disse que “o Futebol Clube do Porto é Jorge Nuno Pinto da Costa”.

Ao longo de tantos anos, não faltaram algumas vozes críticas, por vezes de pessoas que lhe foram muito próximas, e que o acusaram de impor um modelo autocrático. Para Pinto da Costa, os danos colaterais nunca tiveram grande importância porque todos aqueles que passam pelo clube, e sejam quais forem as suas funções, não são mais do que instrumento de um desígnio que persegue, e que não se esgota. Por isso mesmo, nunca hesitou em afastar aqueles que o tentaram desafiar. Aliás, como o próprio confessava, em 1977, “quem me conhece sabe bem que na mó de baixo sou terrível: não cedo nem desarmo”. Dom Januário Torgal Ferreira, seu amigo e admirador, confessa que “houve com certeza erros e fragilidades. São ingredientes de toda e qualquer existência, aprendendo-se sempre com a exactidão das derrotas e, no seu após, com o alvoroço dos projectos”, mas reconhece que Jorge Nuno Pinto da Costa “personificou uma escola, traduziu uma lógica profissional, criou uma honra, mandatou uma ordem pedagógica, cujos critérios se patenteiam no pluralismo valorativo das suas modalidades e no reconhecimento internacional da sua equipa de futebol”, salientando que “a secundarização, o desdém, a menos justiça feita a quem prossegue enquanto pessoa, região e seus direitos, aguça a defesa e o valimento do património”.

Houve um tempo em que se pensou que a ascensão do FC Porto, e o sucesso da gestão de Jorge Nuno Pinto da Costa, se deviam, em grande parte, à alegada promiscuidade entre a política e o futebol. É verdade que, durante muitos anos, houve um alinhamento estratégico entre a edilidade e o clube, de que este beneficiou para crescer e, também, para desenvolver as suas infra-estruturas. Depois, com as mudanças políticas que ocorreram há dez anos na cidade, e com o litígio que então estalou entre o novo poder político e o Futebol Clube do Porto, admitiu-se que o projecto de Pinto da Costa pudesse fracassar, mais a mais porque os seus velhos adversários da capital continuavam a contar com o incondicional apoio da sua autarquia, e também do poder central.

O que é certo é que, no plano desportivo, o FC Porto continuou a marcar o seu terreno, prolongando a sua hegemonia a nível nacional e somando títulos no estrangeiro. Comprovou-se, assim, que a supremacia do Futebol Clube do Porto não precisava de muletas. Percebeu-se, também, que os políticos recolhem mais benefícios do futebol, enquanto palco onde gostam de ser vistos, do que o futebol colhe da política, que muitas vezes tem do desporto uma visão interesseira.

Foi por isso que Pinto da Costa sempre recusou os muitos convites que lhe foram endereçados para entrar na política, ainda que, por razões de amizade e de solidariedade pessoal, não tenha deixado de apoiar, de forma mais ou menos discreta, os candidatos que lhe são mais próximos. E, numa recente entrevista, o Presidente do FC Porto afirmaria que não queria políticos no futebol.

Essa separação das águas não teve, por isso, consequências e, poucos anos depois, o Futebol Clube do Porto chegou, pela segunda vez, ao título de campeão europeu de clubes. Surgiram, então um conjunto de episódios que levantaram suspeitas sobre os métodos e sobre a ética da liderança de Pinto da Costa. Esses casos, por razões que a história não explicará, mas que a razão e o bom senso ajudam a descodificar, tiveram apenas, como alvo, clubes e dirigentes do Norte.

Apesar da pronta condenação na praça pública, num processo que contou com o empenho da comunicação social, Pinto da Costa e o Futebol Clube do Porto foram vencendo todas as batalhas jurídicas. Ainda assim, durante esse período, e enquanto os processos se arrastaram, o peso da suspeita e da insídia, que recaíam sobre a instituição e sobre o seu líder, não deixaram de ter um impacto considerável no plano desportivo. No entanto, o Futebol Clube do Porto resistiu aos ataques de que foi alvo, “fez das tripas coração”, continuou a vencer campeonatos e taças e, este ano, voltou a ganhar um título europeu.

Como Santiago Bernabéu e Angelo Moratti

Nestes 30 anos, sucederam-se os jogadores e os treinadores. Alvo da cobiça dos clubes mais ricos, muitos dos melhores, que foram descobertos e que chegaram ao estrelato no clube, partiram para outras paragens.

Houve momentos em que se pensou que essa rotação poderia causar rupturas, mas o ciclo que se iniciou com José Maria Pedroto nunca foi interrompido. Para cada um que se pensava ser insubstituível, Pinto da Costa encontrou sempre um substituto à altura das ambições do clube. Não podendo contratar os melhores do Mundo, o Futebol Clube do Porto transformou-se num laboratório de aperfeiçoamento de jogadores e, também, de treinadores. Como ainda há dias era reconhecido por Graham Souness, um escocês que passou pelo futebol português, “ter sucesso em Portugal com o Futebol Clube do Porto não é grande coisa. Pela forma como as coisas lá estão estruturadas, do Presidente para baixo, eles têm todos os anos o sucesso garantido.”. É a esse grande líder portuense e portista, que O TRIPEIRO dedica o seu destaque. Como destacou Miguel Sousa Tavares, “em qualquer país civilizado do Mundo, o Futebol Clube do Porto seria motivo de orgulho, e de gratidão de toda a nação. Aqui é motivo de inveja e de ódio – que á a recompensa que a mesquinhez reserva à grandeza”. Para nós, a grandeza e o sucesso merecem reconhecimento, e o seu grande obreiro merece este tributo. Jorge Nuno Pinto da Costa é, sem sombra de dúvida, um dos grandes homens da nossa cidade.

Apesar de ter vencido tudo aquilo que havia para vencer, e ter projectado o clube no plano internacional, o seu entusiasmo continua igual ao do primeiro dia. Odiado pelos inimigos, invejado pelos adversários e venerado pelas suas hostes, o presidente portista inverteu o ciclo do futebol. É ele o grande obreiro do Futebol Clube do Porto, um clube que não tem concorrência interna à sua altura, e que é olhado como uma das mais prestigiadas instituições da cidade.

Lennart Johansson, um dos grandes senhores do futebol Mundial resumiria, assim, as características do presidente portista: “A paixão pelo futebol, a paixão pelo clube, a paixão pela comunidade: três paixões que definem a vida extraordinária de Jorge Nuno Pinto da Costa. (…) É verdadeiramente um homem de excepção. Na família do futebol, o seu carisma, a sua personalidade poderosa e a sua singular argúcia geraram controvérsia, mas, acima de tudo, uma enorme admiração. O Futebol Clube do Porto sempre foi a sua prioridade. Ele pertence ao restrito grupo dos grandes criadores de impérios, ao escasso número de grandes presidentes, juntamente com algumas grandes lendas do futebol

das gerações passadas, como Santiago Bernabéu e Angelo Moratti.”

Artigo de Rui Moreira

“O FC Porto nunca poderá ter um dono”

“Olhando para trás, tenho uma dupla sensação. Vivi momentos fantásticos no FC Porto, terei ajudado o FCPorto a ser o clube de dimensão mundial que hoje é. Mas também tenho um bocadinho a sensação de que foram 30 anos em que abdiquei de muita coisa, em que deixei de fazer muita coisa. Não vou dizer que foram 30anos perdidos, de maneira nenhuma, mas foram 30 anos em que não vivi a minha vida, em que condicionei a minha vida quase inteiramente ao FC Porto, as férias, os fins-de-semana, tudo”. A confissão é de Pinto da Costa, presidente do FC Porto há 29 anos, e foi partilhada no clima informal de um almoço com O TRIPEIRO, no passado dia 9 de Agosto, do qual resultou a presente entrevista.

O FC Porto acaba de vencer a Supertaça nacional frente ao Vitória de Guimarães. Na contabilidade dos troféus, passa a ter 70 títulos contra 68 do Benfica. Quantos destes títulos são do seu consulado? São 54 títulos. Só no futebol. Com as outras modalidades são muitíssimo mais.

Qual foi o troféu que lhe deu mais gozo?

Foi o de Viena [em 1987, quando o FC Porto venceu a Taça dos Campeões Europeus]. E há um que não está contabilizado nos 54, porque ainda não era presidente. Foi o primeiro em que colaborei como director do futebol. O FC Porto não ganhava há 19 anos e não me passava pela cabeça admitir que um dia iria estar sentado no banco ao lado do treinador a conseguir um título para o FC Porto. Por isso, esse título tem um significado especial, embora não conste nos 54. Dos 54, direi que há três especiais. O primeiro é o de Viena. Era absolutamente impensável, embora eu tivesse prometido no meu manifesto eleitoral que fazia parte do meu plano estar numa final europeia. Mas não dizia sequer que fosse a Taça dos Campeões. Nem tão pouco que ia ganhá-la. O primeiro passo era estar numa final europeia, mas era impensável que cinco anos depois estivéssemos a ser campeões europeus, para mais contra o Bayern de Munique. Esse foi o momento mais especial. O segundo foi o “tri”, porque várias vezes estivemos à beira do “tri”, e por isto ou por aquilo nunca conseguimos. Conseguimo-lo num jogo fantástico em Guimarães! E depois foi o título do “penta” com o Fernando Santos. Nunca ninguém conseguira um pentacampeonato em Portugal, nem o Benfica do Eusébio nem o Sporting dos cinco violinos. Foi também um título muito especial e importante.

Quando olha para este consulado de quase 30 anos, tão inédito quanto improvável, o que é que lhe vem à cabeça? Do que é que se lembra primeiro? São muitos sentimentos diferentes… [pausa] Tenho noção de que esta pergunta é injusta, que é difícil responder assim de repente, condensar três décadas numa resposta breve. Olhando para trás, tenho uma dupla sensação. Vivi momentos fantásticos no FC Porto, terei ajudado o FC Porto a ser o clube de dimensão mundial que hoje é. Para além das vitórias, tive momentos de grande satisfação como a inauguração do Estádio do Dragão, que foi um momento inesquecível. Mas também tenho um bocadinho a sensação de que foram 30 anos em que abdiquei de muita coisa, em que deixei de fazer muita coisa. Não vou dizer que foram 30 anos perdidos, de maneira nenhuma, mas foram 30 anos em que não vivi a minha vida, em que condicionei a minha vida quase inteiramente ao FC Porto, as férias, os fins-de-semana, tudo. Em termos desportivos, naturalmente, sinto-me muito orgulhoso e feliz por ter vivido momentos tão bonitos e importantes para o clube e para a cidade. E até para o país.

É uma dedicação permanente, quase exclusiva? Quem não estiver disponível permanentemente para a sua actividade, seja ela qual for, não chega a lado nenhum. Uma coisa são os horários de trabalho, outra coisa é a disponibilidade para o trabalho. Se às duas da manhã houver uma coisa importante, toda a gente sabe que não vai deixar de me acordar para tratar disso.

Existe uma forte ligação do clube à cidade e à região, é algo que faz parte da matriz do próprio FC Porto. Não por acaso, a esmagadora maioria dos grandes clubes mundiais tem essa matriz regional… O FC Porto tem o nome da cidade e o escudo da cidade no emblema, portanto seria impossível e absolutamente impensável esquecermos o Porto e a nossa região pelo facto de hoje sermos conhecidos em todo o mundo e sermos dos clubes com mais vitórias internacionais em toda a Europa. Tenho muita honra em que o FC Porto seja um clube mundial, mas nunca esqueço nem as nossas origens nem aqueles que à nossa volta vivem o dia-a-dia do clube.

E como é que começou esta aventura de quase 30 anos?

Trinta anos como presidente, porque o meu primeiro cartão do FC Porto é de 1960, da secção de hóquei em patins, já lá vão mais de 50 anos. E antes disso tenho uma carta do clube com um voto de louvor assinado pelo Dr. Cesário Bonito, com data de 1956. Portanto, a minha ligação ao clube em cargos directivos não tem nada a ver asapenas com estes 30 anos. Antes disso estive quatro anos no futebol. Antes ainda, durante três anos, fui director das actividades amadoras como membro executivo de uma direcção presidida por Pinto de Magalhães. E já anteriormente tinha estado em diversas secções. Aliás, desde criança que acompanhava o Porto e ia ver os jogos todos, de todas as modalidades.

Até que um dia o convidaram…

Sim, convidaram-me para ajudar numa secção. E pelos vistos gostaram do meu trabalho. Tanto assim que o Dr. Miguel Pereira [vice-presidente para as modalidades] chamava-me “bombeiro voluntário”. Quando havia uma secção a “arder” ligava-me. Se ele me tratava por “bombeiro voluntário”, eu já sabia o que vinha a caminho. A propósito disso tem uma história curiosa para partilhar connosco. Um

dia ele telefona-me e chama-me “bombeiro voluntário”. Eu disse-lhe logo: “Ó Doutor, já vem aí canelada…”. Ele tinha uma secção a “arder” e precisava da minha ajuda, caso contrário o presidente do clube, que na altura era o Pinto de Magalhães, “acaba com a secção, porque aquilo está tudo de pernas para o ar”. Perguntei-lhe qual era a secção, mas ele não me quis dizer: “Primeiro aceite o convite. São só três meses para pôr aquilo direito”. Eu disse-lhe: “Pronto, está bem, se são só três meses aceito. Mas agora diga-me qual é a secção”. E então ele abriu o jogo. Era a secção de boxe. E para me assustar ainda mais, acrescentou no fim da conversa: “Olhe, agora vou lembrar-lhe uma coisa. Aquilo anda tudo às turras. E não se esqueça: a nível de seccionistas, dirigentes e associações, no boxe é tudo gente que levou muitos murros na cabeça”. Fiquei assustadíssimo. Mas estava enganado. Não estive três meses no boxe; estive três anos. Adorei, era uma malta fantástica. Fomos campeões nacionais. Ainda hoje sou amigo de antigos atletas dessa altura, indivíduos excelentes.

Na secção de boxe aceitou o repto por três meses e acabou por ficar três anos. Na direcção do clube a história repetiu-se, e já lá vão três décadas… As coisas foram acontecendo com naturalidade, por convites. Lembro-me quando fui a primeira vez director, no tempo do Pinto Magalhães. Quando ele me convidou, disse-lhe que não. Convidou-me para director das modalidades amadoras e explicou-me quem eram os outros. Um deles era o Belmiro de Azevedo, que iria ficar com a natação, outro era o Delfim Ferreira, que ficava com o andebol, e eu ficaria com o atletismo, o hóquei em campo e o boxe. Não aceitei. Disse-lhe

que não queria deixar a secção de hóquei em patins, que preferia ser chefe de secção e ter o hóquei em patins do que ser director e não ter o hóquei em patins. Porque queria que o FC Porto fosse campeão de hóquei em patins, e ainda não tinha sido. Ele ficou muito admirado com a minha recusa. Mas no dia seguinte insistiu e disse-me que eu ficava também com o hóquei em patins. Então aceitei. Isto surgiu com naturalidade. E depois, no futebol, foi a mesma coisa.

Mas quando Pinto de Magalhães deixou a presidência do clube, em 1971, saiu com ele. E depois recusou o convite do presidente que lhe sucedeu, Américo de Sá, para integrar a nova direcção.

Sim, quando Pinto Magalhães saiu entendi que devia sair também. E recusei o convite de Américo de Sá porque não queria mais ser director, achava que já tinha cumprido a minha missão. Mas as coisas começaram a correr mal e regressei [em 1976] como director do departamento de futebol. Depois, quando saí do futebol [em 1980], nunca pensei que um dia viria a ser presidente do FC Porto. Mas foi isso que sucedeu em Abril de 1982… O eng. Armando Pimentel e o Álvaro Pinto vieram ter comigo para formar uma lista. Eu disse: “Vamos fazer uma lista, mas tem de ser uma coisa com pés e cabeça para ajudar, não é para armar confusões”. Eles concordaram, e entrei na lista para ser novamente director do futebol. Tínhamos um presidente em mente que era o Manuel Couto, conhecido por Neca Couto, que era um grande portista e um industrial muito importante daquela altura. Falei com ele para entrar no grupo e a coisa foi engrossando. Fizemos umas sessões de esclarecimento para divulgar o projecto e as pessoas aderiram com entusiasmo, comigo sempre na expectativa de que o Neca Couto seria o presidente. Quando fui falar com ele, num jantar no restaurante Atlântico em Grijó, em que era suposto estarem todos os elementos do grupo, cheguei lá e não vi ninguém. Questionei o empregado e ele disse-me que tinha marcado uma mesa para dois. Fiquei logo de pé atrás. Então éramos dez pessoas e ele marcou uma mesa para dois? Eles tinham combinado tudo entres eles e ninguém podia ir ao jantar, um porque tinha o gato doente, outro porque a sogra tinha passado mal… Até que o Neca Couto chegou ao restaurante e eu disse-lhe: “Olhe Neca, você sabe ao que venho. Os outros não puderam vir, pelo que parece, mas é apenas sim: você é o nosso presidente e é altura de o oficializar”. E ele, com o ar bonacheirão que lhe era característico e que eu conhecia bem, respondeu-me: “Ó Jorge, você ainda não viu que o presidente é você? O clube precisa da sua cabeça e da minha carteira, não é da minha cabeça e da sua carteira!”. E foi assim que fui eleito presidente para um mandato de dois anos, nunca pensando realmente que ia estar este tempo todo.

A sua sucessão é uma coisa que o preocupa? Às vezes pensa nisso, como qualquer vulgar adepto?

Naturalmente que penso. Mas penso nisso com confiança. Porque não tenho dúvidas de que no FC Porto há pessoas com grande capacidade para poderem continuar este caminho e fazerem melhor. Mas entendo que não devo ser eu a patrocinar nenhuma candidatura, nem a envolver-me em qualquer campanha eleitoral. Existem várias pessoas que eu veria com enorme tranquilidade a assumir a presidência do FCPorto.

A grandeza do clube já lhe permite esse sossego, esse conforto? Já! Não tenho a mínima dúvida de que hoje amassa associativa sabe aquilo de que o clube precisa, sabe as pessoas que são capazes. No momento de escolherem, não tenho dúvida de que vão escolher bem.

Mas as SAD’s dos clubes começam a ser dominadas por sociedades de investidores. O Beira-Mar, por exemplo, acaba de ser comprado por um grupo iraniano. Teme que esse risco exista no FC Porto?

Os investidores só entrarão no FC Porto se for essa a nossa vontade. O clube tem neste momento 40% das acções e é difícil a quem quer que seja conseguir

51%. Portanto, só com um entendimento é que isso é possível. Além do mais, os estatutos da SAD conferem ao clube o direito de escolher o presidente. Naturalmente, qualquer presidente do FC Porto que venha a presidir à SAD acautelará certamente os interesses do clube. Outra coisa é fazer parcerias, e temos de caminhar nesse sentido. Acho que o FC Porto nunca poderá ter um dono. O FC Porto tem de ser dos sócios. Os sócios é que têm de ser os donos. Hoje em dia, toda a gente percebe que a raiz regional do clube é essencial.

Apesar de tudo, o FC Porto defronta-se com o problema de viver num país pequeno. Ou seja, se houvesse uma liga europeia de clubes, o FC Porto estaria estaria certamente nessa competição e poderia viver à margem das limitações do país…

É evidente.

E acha que o futebol pode avançar para isso, à semelhança do basquetebol nos Estados Unidos?

Acho que já estivemos mais perto disso quando foi o G-14 [organização dos clubes mais poderosos do futebol europeu que se dissolveu em Fevereiro de 2008]. A UEFA teve a habilidade de conseguir desmobilizar este grupo com a ajuda de alguns clubes, nomeadamente do Barcelona no tempo do Laporta. Uma liga europeia sem Real Madrid, Barcelona ou Manchester não teria hipóteses. Fruto de acordos que desconheço, o certo é que esses clubes mudaram de opinião. Portanto, acha que a superliga europeia está hoje mais longe? Mais longe do que esteve no tempo do G-14.

E isso por influência da UEFA?

Claro! Como é evidente.

Depois de tudo o que alcançou como presidente do FC Porto, ainda consegue estabelecer um grande desígnio?

Para já temos o objectivo imediato do museu, que pretendemos inaugurar no dia 23 de Abril do ano que vem, um projecto fantástico de um arquitecto de Barcelona que vai ser uma obra que nos vai encher de orgulho. E depois há sempre coisas para fazer. Ainda noutro dia me perguntaram o que faria se me saísse o Euromilhões. E eu respondi: “Dava uma grande casa à minha noiva. Dava uma grande casa ao meu filho. Uma grande casa à minha filha. Pagava as dívidas do Coração da Cidade [instituição de apoio aos sem-abrigo do Porto] e voltava a ter ciclismo no FC Porto”. São coisas que sem o Euromilhões não tenho possibilidade de fazer. Portanto, se um dia aparecer alguém com capacidade para termos uma grande equipa de ciclismo, aí está uma coisa de que eu gostava muito porque é um veículo importante de propaganda do clube. Aliás, nunca perdeu esse lado ecléctico, embora seja sempre associado ao sucesso do futebol.

Por isso lhe pergunto se o inédito decacampeonato no hóquei em patins foi sentido por si de um modo especial.

Naturalmente. Foi no hóquei que comecei. Ninguém pode estranhar que essa conquista me dê um prazer redobrado.

Se tivesse que identificar alguns nomes desta longa caminhada, quem é que destacaria?

Muita gente! E eu não quero ferir susceptibilidades. Portanto, para não ferir susceptibilidades vou mencionar apenas pessoas que, infelizmente, já cá não estão. Em primeiro lugar o Pedroto, porque foi com ele que se traçou toda a estratégia inicial. Depois o Comendador Gonçalves Gomes, que era uma pessoa fantástica. E também o Dr. Pôncio Monteiro e o Teles Roxo, uma morte que me marcou muito. Ele morreu no dia de Natal [de 1991]. Creio que nunca contei isto, mas uma semana antes tínhamos estado a almoçar no então Hotel Meridien porque, nessa altura, tinha uns projectos em que tencionava envolver-me e que passavam por deixar o FC Porto. Por isso tive esta conversa com ele, para ele ser o meu sucessor. O Teles Roxo já não estava na direcção, mas eu queria que ele fosse meu sucessor. Pelo que conhecia dele, era a pessoa certa.

Na altura, inclusive, especulava-se na imprensa sobre o vosso relacionamento, que já teria tido melhores dias…

Sim, mas era tudo conversa. Tanto assim que tivemos aquele encontro, em que ele me pediu: “É pá, não me faça isso, que agora é que estou a ganhar dinheiro”. Ele tinha mudado de empresa e primeiro queria pôr a vida dele em ordem. Por isso acrescentou: “Depois, no fim do próximo mandato, se o senhor quiser realmente que eu assuma, então nessa altura já estarei em condições e disponibilizo a minha vida”. Teles Roxo ia ser o meu sucessor. Até combinámos ter reuniões periódicas para ele ir ficando por dentro dos assuntos. Ia ser uma sucessão quase natural, porque ele foi um elemento muito importante na vitória de 87, em Viena. Depois recebo a notícia de que ele tinha morrido daquela forma estúpida [num acidente de viação]. Chocou-me imenso! Para além de ter sido um bom parceiro, um grande elemento, Teles Roxo tinha o perfil de que eu gostava para me suceder. Estas são algumas das pessoas que me marcaram ao longo do percurso no FC Porto. E também aqueles que entraram neste projecto no campo técnico, como o Robson e o Ivic, que foram dois treinadores fantásticos e duas pessoas fora de série. Também os recordo com muita saudade.

Uma última pergunta. Como vê a cidade do Porto no futuro, por exemplo daqui a 20 anos?

O futuro da cidade vai depender muito dos portuenses genuínos e com capacidade para assumirem as suas responsabilidades na próxima eleição da Câmara do Porto. Se isso não acontecer, vamos continuar como estamos.

Símbolos e referências

São referências pessoais do presidente do FC Porto, sobretudo da cidade do Porto, aqui partilhadas com O TRIPEIRO sob a forma de perguntas directas e respostas rápidas.

Edifício preferido?

Em termos modernos, a Torre das Antas. Um projecto se calhar inadequado naquele local, mas que eu vi nascer. Acompanhei o entusiasmo do Comendador Gonçalves Gomes [empresário falecido em 1998, dono dos supermercados Villares, que ficou conhecido pelo seu empenho no FC Porto e pelo apoio à candidatura de Ramalho Eanes à Presidência da República, em 1980] por aquele projecto e dá-me sempre gozo vê-lo,olhar para a torre, passo lá diariamente. Era o sonho do Gonçalves Gomes.

E monumento?

A Torre dos Clérigos, indiscutivelmente.

Tem um jardim que prefira?

O jardim da Praça Sá Carneiro. Talvez por andar lá a passear muitas vezes. E pela proximidade das Antas.

Que livro citaria?

Achei muito interessante o último que li, que é “O Águia do Graveto” [livro de Nogueira Baptista, da editora Voxgo]. Interessante, se quiser eu arranjo-lhe.

Filme?

Vou pouco ao cinema, mas gostava muito. Dos filmes que me lembro, de quando tinha tempo para ir ao cinema… lembro-me do “Deus lhe pague”, que esteve no cinema S. João quase meio ano, do “Rebecca” e do “Cyrano de Bergerac”. Agora, infelizmente, é raríssimo ir ao cinema.

E música?

Gosto muito do “We are the champions”.

Quanto ao poeta, imagino a resposta…

Tenho dois de que gosto muito. O José Régio e o António Nobre.

Escultura…

“O Desterrado”, de Soares dos Reis.

E pintura, aprecia?

Gosto muito de Malhoa [pintor natural da Caldas da Rainha, 1855-1933].

Personagem histórica?

Nuno Álvares Pereira.

Que café frequenta?

Quando era jovem frequentava o Aviz, porque estudava no Colégio Almeida Garrett. Era para o Aviz que íamos, eu e os meus colegas, quando acabavam as aulas e também nos intervalos, para jogar bilhar ou conversar. Foi o meu café da juventude. Depois passou a ser o café Bom Dia, na Praça Velasquez. Foram lá as reuniões preparatórias da minha candidatura à presidência do FC Porto.

No Porto, do que mais gosta?

Do que mais gosto? Do Futebol Clube do Porto e dos portuenses.

No Porto, o que mais o irrita?O que mais me irrita é ver, por vezes, destruir partes bonitas da cidade, como aconteceu recentemente na Avenida dos Aliados.

Qual o seu restaurante preferido?

Tenho de ter cuidado a responder! Mas gosto muito do Xanquinhas [em Leça da Palmeira]. Dentro da cidade não sei, há tão poucos… mas gosto do restaurante do Rui Paula. Chama-se DOP, não é?

“Largos dias têm cem anos”

É por influência do tio Armando Pinto, entusiasta de futebol que fora presidente do Famalicão, que Jorge Nuno Pinto da Costa começa a interessar-se por futebol. É o tio quem paga os ingressos do FC Porto x Sporting de

Braga, o primeiro jogo a que Jorge Nuno, com 8 anos, assiste no Campo da Constituição, na companhia do seu irmão José Eduardo. Desde então não mais se desligou do clube, nem mesmo quando se encontrava longe do Porto, procurando sempre que possível ouvir o relato das partidas.

Quando completa 16 anos, em Dezembro de 1953, a avó materna inscreve- o como sócio do FC Porto. Jorge Nuno acompanha religiosamente os jogos do clube, sobretudo de futebol e hóquei em patins. Com cerca de 20 anos, é convidado pelo responsável pela secção de hóquei em patins para ocupar o lugar de vogal, e aceita. Em 1962 passaria a chefe de secção, cargo que viria a acumular com o de chefe da secção de hóquei em campo. Em 1967 passa a ser também chefe da secção de boxe, onde conhece Reinaldo Teles, na altura atleta da modalidade. Em 1969, é convidado por Afonso Pinto de Magalhães a integrar a sua lista para as eleições desse ano como director das modalidades amadoras. Assim, Pinto da Costa assume pela primeira vez um cargo eleito no FC Porto, de 1969 a 1971. No final desse período, apesar de ter sido convidado por Américo de Sá a candidatar-se com ele, recusou o convite por considerar que o novo candidato deveria apresentar-se às urnas com uma lista totalmente renovada. Em 1976, em conversa com um grupo de amigos e apesar de não se encontrara desempenhar funções no FC Porto, alguns deles – boavisteiros – provocavam Pinto da Costa por o seu clube ter deixado que o futebolista Amarildo, praticamente contratado, “fugisse” para o Boavista. Em resposta, Pinto da Costa disse apenas que “largos dias têm cem anos”, decidindo nesse preciso momento – soube-se mais tarde, aquando da publicação da sua autobiografia – regressar ao dirigismo desportivo. Conversou com o presidente Américo de Sá e comprometeu-se a fazer parte da sua lista nas eleições seguintes como director do departamento de futebol. Ainda antes das eleições, acertou com José Maria Pedroto, treinador do Boavista, o seu regresso ao FC Porto, onde já havia sido jogador e treinador. Em Maio desse mesmo ano, Pinto da Costa volta a ser dirigente do FC Porto. É com Américo de Sá como presidente, Pinto da Costa como director do futebol e Pedroto como treinador que o FC Porto consegue quebrar, em 1977-78, o jejum de 19 anos sem vencer um campeonato nacional. Apesar disso, o final da década de 70 é um período conturbado para o FC Porto, e Pinto da Costa e Pedroto acabam por deixar o clube em 1980. Em Dezembro de 1981 as coisas continuam a correr mal ao FC Porto, e é então que um grupo de sócios se une com o objectivo de convencer Pinto da Costa a candidatar-se à presidência do clube. O “sim” demora a surgir, mas perante a insistência dos sócios Pinto da Costa acaba por aceitar, convidando Pedroto para voltar a treinar a equipa principal. Candidatando-se em lista única, Jorge Nuno Pinto da Costa vence as eleições de 17 de Abril de 1982, tornando-se o 33º presidente do FC Porto. No mesmo ano, o hóquei em patins do clube, que não havia vencido qualquer título desde a sua implementação em 1955, vence a Taça das Taças, arrancando para um período de ouro que se prolonga até aos dias de hoje. Em 1984, o FC Porto chega à sua primeira final Europeia de futebol, na Taça das Taças, contra a Juventus, da qual sai derrotado por 2-1. Em 1987 vence a Taça dos Clubes Campeões Europeus e a Taça Intercontinental, e depois a Supertaça Europeia relativa à mesma época, já no início de 1988. A década de 90 seria gloriosa para o futebol portista graças à conquista de oito campeonatos, cinco deles consecutivamente – o “penta”, feito inédito no futebol português. Já no século XXI o clube azul e branco aumentaria o seu palmarés internacional, Vencendo a Taça UEFA em 2003 e a Liga dos Campeões em 2004 sob o comando de José Mourinho, a Taça Intercontinental do mesmo ano já com Victor Fernandez, e a Liga Europa (que substituiu a Taça UEFA) em 2011 sob o comando de André Villas-Boas. No plano interno, no ano de 2009 o FC Porto conquista o segundo tetracampeonato da presidência de Pinto da Costa e da história do clube, coma equipa sob o comando de Jesualdo Ferreira.

In WIKIPÉDIA

NOTA DO EDITOR

Não é feita qualquer referência nestas páginas à final da Supertaça Europeia de 2011 jogada no Mónaco, a 26 de Agosto, entre o FC Porto e o Barcelona, porque o fecho da revista foi anterior a essa data.

O seu nome é Jorge Nuno, o seu nome é Porto

Há um clube, uma cidade, uma região que se confunde com ele, mas ninguém confunde o Homem com o autor. Jorge Nuno deu-nos mais razões para acreditar que há Homem para além da obra, que há Jorge Nuno para além de Pinto da Costa. E é essa, em grande parte, a razão da sua grandiosidade, do seu carácter de excepção. O intenso nevoeiro que cai e molda a paisagem já teve diversas e luminosas glorificações. A paisagem é tantas vezes o pano de fundo ou a narrativa do supérfluo mas é nela que muitos se movimentam ao querer ver o indefensável mas pouco fazendo por merecer a força que acompanha o destino da felicidade que no futebol, como sabemos, tem uma palavra mãe: vencer. Esses ficam assim, absortos pelos outros, a ver a paisagem como quem vê a caravana a passar. Poucos terão captado tão bem a essência do nevoeiro como Michelangelo Antonioni no filme “Identificação de uma mulher”. Poucos terão identificado tão acertadamente o essencial da narrativa como Jorge Nuno Pinto da Costa. A dúvida existe sempre e é profundamente excitante do ponto de vista da ortodoxia académica: os homens são o que são ou o que fazem? Há quem responda à pergunta “quem és?” balbuciando “eu sou o que faço”, não tendo a mínima noção de que nesse preciso momento estão a anunciar publicamente um “alter ego”. Ninguém é só o que faz. Escrever sobre Pinto da Costa do ponto de vista das conquistas desportivas é redutor, dissertar sobre a actual hegemonia de um clube que derrubou o complexo da ponte é desenrolar o novelo pelo fim puxando a linha pelo centro do novelo, desatando-o mas forçando a entrada ao arrepio do tempo. Da mesma forma que qualquer troféu num palmarés deve estar sempre acompanhado de uma legenda, também qualquer momento de transformação deveria ter sempre um centro que a interpretasse. Para o extraordinário palmarés do FC Porto, erguer-se-á brevemente um museu, mas para a interpretação da mudança convoquemos o seu artífice. Não tenhamos dúvidas: o FC Porto teve anteriores criadores, mas Jorge Nuno Pinto da Costa é o seu traço de autor e, inquestionavelmente, o seu “pater” famílias. Mesmo e sobretudo para quem aprecia poesia, a narrativa da prosa escreve-se do ponto de vista do autor. Eis-nos perante Jorge Nuno, o autor do Pinto da Costa que todos vemos. É por isso que um livro com o hipotético nome de “Eu, Jorge Nuno” só poderia ser escrito pelo próprio e não por qualquer jornalista de carteira a soldo. E é por isso que só Jorge Nuno poderá dizer de si e sobre si, Pinto da Costa. Os seus gestos de afecto não se resumem e expressam num só amor chamado clube. Há um clube, uma cidade, uma região que se confunde com ele, mas ninguém confunde o Homem com o autor. Jorge Nuno deu-nos mais razões para acreditar que há Homem para além da obra, que há Jorge Nuno para além de Pinto da Costa. E é essa, em grande parte, a razão da sua grandiosidade, do seu carácter de excepção, da assumpção das características de alguém que não hesita em viver a sua vida porque é a sua, assim como é também a razão do crescente sentimento de orfandade quando se equaciona o inevitável abandono que a linha do tempo traça indelével mas em suspensão.

O meu primeiro contacto com o Presidente Pinto da Costa acontece quando o meu cartão de associado mudou subitamente de assinatura. A partir de 1982, onde se lia Américo de Sá passou a ler-se Jorge Nuno Pinto da Costa. Nada teve de súbito, claro. A assinatura tinha mudado, era agora mais larga, mais forte e redonda, assumia verdadeiramente o cartão como a partir daí assumiu o seu papel de distinto relevo. Eu, nos meus ainda não feitos dez anos de idade, estava longe de assimilar a dimensão da mudança e de imaginar o que aí vinha. Mas tinha uma vaga ideia do passado recente. Cinco anos antes, tinha eu precisamente meia dúzia deles, recordo ter saído para a rua numa imensa festa colectiva, desfraldando a minha bandeira azul e branca com rebordos brancos e pequenas linhas soltas, provavelmente gritando “PO-R-TO sem grande certeza do R”, pela mão segura do meu pai e da mão mais trémula do meu avô, ambos esfuziantes e embriagados de alegria pelo fim do jejum de 19 anos. Lembro-me do Verão quente, de mais tarde recordar José Maria Pedroto com saudade através dos jogos que fazia em sua homenagem no recreio da escola, com pequenas pedras redondas e balizas traçadas a ramos de árvore na terra batida, inevitavelmente no um-para-um com o meu grande amigo Óscar Ferreira, também ele portista de gema. Só não tinha, em 1982, como de resto ninguém conseguia ter, a capacidade de prever que nada mais haveria de ser como dantes e que o dragão não mais jejuaria. E assim se começaram a criar gerações sobre gerações de portistas, tão orgulhosos como no passado mas seguramente muito mais felizes e emancipados onde quer que sentissem a chama do dragão. O fim das trevas. No fim do séc. XIX, Portugal era um país com cerca de 75% de analfabetos. Com João de Deus, pedagogo e poeta português, surge uma nova metodologia de iniciação à leitura, “A Cartilha”. Ela foi-se adaptando... Apesar de uma classe média progressivamente mais culta, mais europeísta e progressista, a educação em Portugal durante todo o séc. XX foi-se desenvolvendo soluçante e a reboque das elites. A precariedade dos sucessivos governos nos primeiros anos da República, as trevas do salazarismo, tantos e tantos soluços e entraves. Até ao 25 de Abril sentia-se um povo em sentido convergente mas curiosamente nunca unânime, nunca acrítico ou acomodado com o regime de pensamento único. Com a Revolução de Abril de 1974 o país mudou tanto como o FC Porto mudou em 1982. Faltava a liberdade para que se pudesse viver um Verão quente e as suas sequelas. Faltava-nos o nosso PREC.

A partir daí tudo foi diferente. Também por isso, o FC Porto de Pinto da Costa simboliza os mais genuínos valores de pensamento do Porto-cidade, das suas lutas e da sua História, assim como dos então novos assomos de liberdade nacional. Mais do que nunca, em 1982, o Porto rimava com o novo Portugal livre. Fim das trevas. O futebol não pode ter uma verdade absoluta quando a sua verdadeira democracia reside na possibilidade de que nele se jogue um jogo. Como reflectia Edgar Morin, o sagrado não está na verdade, antes na necessidade de salvaguarda Do jogo da verdade e do erro. Nesse sentido, Pinto da Costa é a figura maior da democracia do futebol português. É ele o maiorjogador, o mais astuto e

inteligente, o mais conhecedor e competente até pelos que escolhe para ter consigo, o mais vitorioso e carismático, porventura o mais adepto dos Presidentes de clube que conheço. Dos outros, pelo ilusionismo do ego de que fazem gala, pelo protagonismo que se sobrepõe ao papel principal que lhes compete, deles está o nosso futebol cheio. Carregados de elevada estima em consideração própria, confrontam-se na demagogia e, não raras vezes, esquecem que os outros têm memória inversamente proporcional à sua falta de vergonha. Carta aberta pela memória, então. O processo de identificação deste “Porto Total” (clube, cidade, região, país), obra de autor de Jorge Nuno Pinto da Costa, criou laços inquebrantáveis de afecto entre gente que se desconhecia, entre comunidades que não sentiam muitos valores comuns pelos quais lutar, sofrer e jubilar. Estes valores poderiam ser centralizados num só: o da Justiça. Como Portugal é este país que temos, monoliticamente centralizado, competiu ao futebol unir essas gentes com o traço de autor de Pinto da Costa. Não se consegue esquecer essa origem, esse fogo, essa combustão. Como se soubesse amar de cor, sem contar a dor, foi ele que deu muita luz à sombra. E sabe sempre bem voltar a entrar e voltar a ver. Desde sempre pensador singular, o homem não consegue abdicar de julgar o seu comportamento e o dos outros, saindo de si, abraçando o conceito mais amplo de cidade. Carta aberta pela memória da gente, então. A nossa retribuição em abraço, Presidente, é assim: ampla, feliz e agradecida. ≠

*Este texto original de Miguel Guedes, um dos mais conhecidos adeptos do FC Porto, foi escrito propositadamente para este destaque de O TRIPEIRO. O autor é elemento do painel de comentadores do programa da Antena 1 “Grandes Adeptos” e, desde a época 2010/2011, do programa “Trio de Ataque” da RTPN. Licenciado em Direito, é músico e vocalista dos Blind Zero. Desempenha, no Porto, as funções de Director da GDA (Gestão dos Direitos dos Artistas intérpretes e executantes)”

Retirada de:

www.dragaodoente.blogspot.com

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